Dados do Censo Demográfico 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que mais da metade (51,2%) da população indígena está concentrada na Amazônia Legal, região formada pelos estados do Norte, Mato Grosso e parte do Maranhão. Em solo mato-grossense, os povos originários se estruturam em 45 etnias e outras duas isoladas, cada uma com suas características socioculturais. Estima-se que em todo o estado essa população seja composta por mais de 50 mil pessoas.
No entanto, estes povos originários nem sempre são lembrados apesar de sua forte influência nos costumes e hábitos culturais tão presentes no dia a dia. Embora a literatura e as tradicionais apostilas aplicadas em sala de aula se dediquem na maioria a narrar a colonização europeia, educadores indígenas têm usado o conhecimento ancestral e as histórias dos antepassados para preservar as memórias de seu povo.
De acordo com o mestre em ensino de contexto intercultural indígena e pertencente a etnia Ikpeng do território do Xingu, o professor Pomerquenpo Txicao Klemer, os povos indígenas foram os primeiros habitantes do Brasil e há séculos ocuparam o território mato-grossense antes mesmo da chegada de espanhóis, bandeirantes e outros povos que colonizaram a região.
Quem também narra a participação indígena na formação do estado é a professora e liderança da aldeia Ararial, do município de Santo Antônio do Leverger, Luciene Jakomearegecebado. A docente explica que a etnia Bororo habitava a região de Cuiabá até Cáceres, Goiânia e a região de Rondonópolis. Nômades, eles procuravam lugares com alimentação abundante para se estabelecer. Guerras entre indígenas e também com não-indígenas foram um dos fatores que motivaram os deslocamentos.
“As famílias se mudavam, mas sempre deixando uma raiz, uma memória em cada lugar que passaram. Estavam sempre em busca de locais próximos aos rios para fixar a aldeia e fazer moradias, pois o básico estava ali, a caça, a pesca, os remédios, tudo que precisavam para sobreviver. Alguns, como os Kaiabi, vieram de outro estado, porque estavam sendo massacrados por seringueiros, mas a maioria já habitava aqui”, diz.
Influência indígena na formação social e cultural
Se engana quem pensa que a cultura indígena está restrita a regiões afastadas e de aldeias isoladas. As contribuições sociais e culturais dos povos originários continuam presentes no dia a dia das cidades.
Pertencente ao povo Bakairi e atual presidente da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), Eliane Xunakalo destaca que a influência indígena pode ser observada no cotidiano. “A alimentação da farinha, do peixe, usar os chás, plantas medicinais, sentar na frente de casa e conversar no fim de tarde, usar a rede. Os traços indígenas nas pessoas, desde da pele aos cabelos, não há de se negar. A cordialidade, o receber bem as pessoas, isso é nossa influência”, explica.
Segundo a professora Luciene, várias palavras que existem hoje são influências da língua bororo. O próprio estado de Mato Grosso possui municípios e localidades com nomes indígenas, inclusive a própria Cuiabá. “O rio Cuiabá era o lugar de pessoal tirar as taquarinhas para poder fazer o Ikuia, que faz a flecha, arpão para pesca. Lá era um lugar desse tipo de material, dessa matéria-prima e ficou esse nome. Pá significa aí o lugar, Ikuia é o lugar, então ficou Ikuya-pa, lugar da taquarinha de fazer a flecha, ou Ikuya, flecha-arpão, segundo a versão dos Bororos”, descreve.
Acervo pessoal
Professora e liderança da aldeia Ararial do município de Santo Antônio do Leverger, Luciene Jakomearegecebado
A própria explicação do nome da Capital seria originada por meio de histórias dos ancestrais, que viveram na região. “A colonização mudou um pouco o nome, a entonação, a pronúncia, porque as pessoas não entendiam bem a nossa língua. Os colonizadores não entendiam o sentido da palavra e denominaram a cidade de Cuiabá. Assim como Coxipó, Torixoréu, vários nomes de lugares”, exemplifica.
Reconhecer no dia a dia tais comportamentos e compreender suas origens é um fator positivo para a preservação dos povos que ainda existem e valorizar de sua participação na constituição do estado.
Para Luciene, é necessária uma maior conscientização em relação ao respeito à língua, modo de viver e principalmente a natureza, para que também se preserve as ervas medicinais, espirituais, a alimentação, a caça e a pesca.
“Sem o território não temos como fazer uma prática cultural e exercer a nossa língua. Então, a gente busca preservar os territórios verdes para a nossa sobrevivência no dia a dia. […] Temos um respeito muito grande pela terra, às vezes nem todo mundo tem. A ganância pelo dinheiro fala mais alto e as pessoas querem desmatar. A luta pela preservação do meio ambiente não é só para nós, ela serve para a população inteira de Mato Grosso e mundialmente”, ressalta.
Tecnologia e a modernidade nas aldeias
Atualmente, parte da sociedade ainda vê os indígenas como pessoas do passado vivendo no mundo contemporâneo. Contudo, o professor Klemer destaca que o trabalho feito nas aldeias é de manutenção das culturas e tradições milenares, mas também de abertura e acesso a conhecimentos universais.
Acervo pessoal
Mestre em ensino de contexto intercultural indígena e pertencente a etnia Ikpeng do território do Xingu, Pomerquenpo Txicao Klemer
“Temos acesso à escola, a universidades, criação de associações indígenas. Como povo, a gente tem organização indígena e temos frequentado as universidades fora da aldeia. Produzimos trabalhos acadêmicos, através dos livros didáticos, de palestras, de eventos importantes”, explicita.
“A nossa luta, enquanto professores indígenas integrantes de uma etnia, é revitalizar as nossas tradições através dos projetos, como a escola. Nela trabalhamos conhecimentos, valorização, alfabetização na língua materna, para manter a tradição e o nosso povo cada vez mais unido e forte. […] Existem várias influências de fora, as tecnologias e muitas coisas que entram nas aldeias, mas a gente tem se reunido e analisado qual é o ponto positivo e negativo dessas influências novas nas nossas comunidades”, comenta.
Luciene reforça a questão do uso da tecnologia enquanto indígenas e professores, para utilizá-la com os jovens, assim como a televisão, internet, celulares e computadores. “São ferramentas importantes para adquirir mais conhecimentos que não são da gente, mas que são importantes para sobreviver no meio da sociedade não-indígena. […] É uma luta grande hoje ensinar os nossos jovens a usar essa ferramenta de uma forma que ela vai nos servir, para defender o seu povo e a floresta”, ressalta.
Conscientização sobre os povos originários
A conscientização da sociedade pela valorização dos povos indígenas e de preservar sua ancestralidade, que também constitui o estado, é o meio para evitar o apagamento destas populações no estado, bem como de suas contribuições socioculturais.
Enquanto indígena, Luciene observa que existem avanços neste ponto, mas muito ainda precisa ser feito em relação à conscientização do respeito para com os povos indígenas e sua cultura, religião, práticas e a língua, principalmente, que é a identidade de um povo indígena.
“A nossa língua eu acredito que deveria ser estudada dentro das escolas não-indígenas também e estar na grade curricular, pelo menos nas escolas do estado de Mato Grosso, ao menos o básico, precisa ser reconhecida por ser a raiz do Mato Grosso, antes dos portugueses virem ao estado, à procura de ouro, de prata e de outras riquezas, já existia uma língua, uma cultura, já existiam pessoas aqui”, destaca.
Alice Aedy e Eric Terena
Presidente da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), Eliane Xunakalo
Para Eliane, é necessário quebrar os preconceito, discriminação e tabus com diálogo. “Acredito que a educação é fundamental neste papel. Todos os dias são dias de luta contínua, pois enquanto tiver problemas estruturais, enquanto não tiver nossos territórios reconhecidos pelo Estado, todos os dias serão de luta pela existência dos povos indígenas”.
Klemer relembra as diversas etnias espalhadas em todo o território de Mato Grosso, em diferentes regiões.”Essa diversidade é importante. Nós, os povos indígenas, trabalhamos bastante para que tenhamos respeito da sociedade nacional, que olhem os povos indígenas como uma sociedade que faz parte da sociedade, com mais com respeito às tradições”, afirma.